quinta-feira, 25 de junho de 2009

Súmula 385 impede danos morais a consumidor

Não se pretende com este artigo apresentar os paradigmas jurisprudenciais pretéritos à Súmula 385 do Superior Tribunal de Justiça, nem mesmo tecer críticas as casuísticas fundantes que deram legitimação positiva à prudência dos redatores da Súmula. Pretende-se apontar seu equívoco teórico a par da casuística do próprio Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, bem como suas consequências práticas. A Súmula apresenta o seguinte teor: “Da anotação irregular em cadastro de proteção ao crédito, não cabe indenização por dano moral quando preexistente legítima inscrição, ressalvado o direito ao cancelamento”.

Trabalhemos com a seguinte hipótese: “A” tem um débito com “B” e, em razão de seu inadimplemento, ocorre a anotação de seu nome no cadastro de proteção ao crédito, respeitada a formalidade de notificação prévia (Código do Consumidor, artigo 43, parágrafo 2º). Num segundo momento, “A” tem um débito com “C” e a anotação é efetivada, sem prévia comunicação do inadimplemento pelo órgão de proteção ao crédito. Ocorre que “A” nada deve; possui todos os comprovantes de pagamento. Assim, sem prévia notificação, à luz do Código de Defesa do Consumidor, ocorrerá irregularidade do registro. Resultado: “A” acaba de ter seu nome anotado indevidamente; não teve possibilidade de justificar-se antes do apontamento, nem mesmo de efetuar o pagamento, caso devido. Diante disso, pergunta-se: a anotação pelo órgão de proteção ao crédito, sem notificação prévia, caracteriza ato ilícito?
Tal situação hipotética encontra ressonância fática corriqueira, que dispensam comprovação jurisprudencial. Conforme a Súmula, “A” terá direito ao cancelamento da anotação (“ressalvado o direito ao cancelamento”) e, isso, por evidente, não se discute. A questão reside no fato de “A” não ter direito a indenização por danos morais decorrentes do ato ilícito cometido. Insista-se: embora a Súmula seja clara no sentido de que “não cabe indenização por dano moral quando preexistente legítima inscrição”, certo é que, em nosso sentir, o ato ilícito não se torna lícito quando preexistente legítima inscrição; continua ilícito.

Nessa ótica, verificamos que a Súmula 385 do STJ, não encontra correspondência ao que enunciado nos artigos 186, 187, 188 e 927 do Código Civil, nem mesmo no artigo 42, parágrafo 2º do Código de Defesa do Consumidor. Primeiro: toda anotação irregular (ação ou omissão voluntária, por negligência ou imprudência) viola direito e causa dano a outrem, constituindo-se, pois, ato ilícito (Código Civil, artigo 186). Segundo: toda anotação irregular constitui abuso de direito, uma vez que o ato negligente (Código Civil, artigo 187), viola os bons costumes e a boa-fé. Terceiro: por ser irregular o apontamento restritivo de crédito, nem há de se falar em exercício regular de um direito reconhecido (Código Civil, artigo 188, inciso I), tendo em vista a clara violação do disposto no artigo 42, parágrafo segundo do Código de Defesa do Consumidor. Com efeito, é possível concluir que o fato de preexistir legítima inscrição em cadastro de proteção ao crédito, não torna a posterior anotação irregular ato lícito.

A propósito, da lição de Carlos Roberto Gonçalves (Responsabilidade Civil, 1995, p. 344), “para que haja obrigação de indenizar, não basta que o autor do fato danoso tenha procedido ilicitamente, violando um direito (subjetivo) [...], é essencial que ele tenha agido com culpa: por ação ou omissão voluntária, por negligência ou imperícia [...]. Agir com culpa significa atuar o agente em termo de, pessoalmente, merecer a censura ou reprovação do direito. E o agente só pode ser pessoalmente censurado ou reprovado na sua conduta, quando, em face das circunstâncias concretas da situação, caiba afirmar que ele podia e devia ter agido de outro modo”.

Ora, voltando à situação hipotética apresentada, pergunta-se: o órgão de proteção ao crédito que efetivou o apontamento sem prévia comunicação poderia ter agido de outra forma? (Sim!). Importa dizer: frente anotação irregular é exigível conduta diversa; neste caso, a diligência revela-se comportamento esperado. Com efeito, o exercício regular de um direito (a anotação) deve estar assegurado na certeza de cumprimento à lei; queremos dizer que o dano moral pressupõe a prática de ato ilícito e, portanto, havendo anotação irregular, há ato ilícito e, portanto, indenização por danos morais.
A par disso, compreendemos que o cerne da análise não reside na violação do direito (isso é indubitável e, por si só, torna insustentável a súmula), mas na existência do dano, isso, em novo ver, fulminado pela conclusão de que “não cabe indenização por dano moral quando preexistente legítima inscrição”. Nessa perspectiva, entendemos que o STJ reduz a complexa tarefa de aferição do dano em situações concretas a uma atividade intelectiva meramente positivista, de adequação da “norma” (Súmula) à situação fática (quem já está registrado legitimamente como mau pagador não pode se sentir moralmente ofendido).

Esta pretensão de generalização (característica típica das Súmulas) não comporta aplicabilidade em questões morais, mesmo porque a moral reside no direito subjetivo individual, carregado de valores, cultura e pré-compreensões do mundo da vida. Ademais, além de ser insondável a objetivação da moral por critérios genéricos, em derrocada ao abalo moral individual e, consequentemente, ao valor axiológico da dignidade da pessoa humana, a Súmula encontra-se repleta de confusão conceitual.
Explica-se: ao definir que da anotação irregular em cadastro de proteção ao crédito não cabe indenização por dano moral quando preexistente legítima inscrição, está-se, em nossa compreensão, dando-se permissão à impunidade no exercício irregular de um direito. Em outras palavras: a anotação irregular sem qualquer condenação por danos morais, torna inconsistente a tentativa do Estado em sanar os abusos praticados no comércio, pois é notória a existência de pessoas (físicas ou jurídicas) que solicitam anotação de dívidas ilegítimas (títulos destituídos de formalidade legal, dívidas já pagas, prescritas, etc.).

Ademais, vale ressaltar ainda, que ao violar o parágrafo segundo do artigo 42 do Código de Defesa do Consumidor, suprime-se do ordenamento jurídico a existência do dever de comunicação prévia, que constitui um verdadeiro “filtro” frente às cobranças indevidas.

A ocorrência desenfreada de anotações irregulares é fato público e notório que desencadeia inúmeras ações judiciais visando indenização por danos morais; é certo, igualmente, que muitas dessas ações são infundadas, cerne da “industria do dano moral”. Por outro lado, não se pode deixar de analisar que a Súmula beneficiará os órgãos de proteção ao crédito com a tese jurídica de improcedência do pedido de pagamento de indenização sob o argumento da preexistência inscrição legítima, ressalta-se, mesmo diante da ocorrência do ato ilícito e do prescrito no artigo 42, parágrafo único do Código de Defesa do Consumidor.

Sem a prévia comunicação, o consumidor não tem sequer a possibilidade de obstar, em tempo, a anotação. Ora, “o devedor tem o direito legal de ser cientificado para que possa esclarecer possível equívoco ou mesmo adimplir desde logo” (REsp 1.004.833-RS, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, julgado em 19/8/2008. Clique aqui para acessar o processo). Entretanto, compreende o STJ que quem já é registrado como mau pagador não pode se sentir moralmente ofendido por mais uma inscrição do nome como inadimplente em cadastros de proteção ao crédito; para ocorrência de dano moral, haverá ser comprovado que as anotações anteriores foram realizadas sem a prévia notificação do interessado.

Em sentido contrário, a Súmula 385 do Superior Tribunal de Justiça vem subtrair a incidência do artigo 944 do Código Civil, retirando do magistrado sua liberdade racional. Ora, se o STJ fora capaz de identificar com a Súmula parâmetro objetivo de não fixação dos danos morais, o subjetivismo do juiz em casos análogos não mais se pode compreender razoável.

Neste ponto e sobre a Súmula, o Ministro Ari Pargendler entende que "não é possível presumir que o consumidor tenha experimentado com a inscrição indevida qualquer sentimento vexatório ou humilhante anormal, porque a situação não lhe seria incomum" (em razão de já ter outra anotação). Ora, como é possível identificar o dano experimentado com base em presunções? Dano moral não se presume, se constata! Além disso, da mesma forma que para o Ministro não é possível presumir a existência dano moral, igualmente não é crível que a ausência de previa notificação não afronta o Código de Defesa do Consumidor. Ora, a quem o Código de Defesa do Consumidor tutela? O consumidor ou o SPC, SERASA, Câmara de Dirigentes Lojistas, dentre outros do gênero?

Em suma, em nosso sentir, a Súmula 385 do STJ, além de incompatível com a tendência jurisprudencial do próprio STJ e do STF, tutela a prática de anotações irregulares, viola o Código de Defesa do Consumidor, da mesma forma que “fecha os olhos” para a moral individual, tornando-a indolor como regra. Ora, da mesma forma que não se encontra (e não se encontrará) parâmetros objetivos à fixação da indenização por danos morais, igualmente, imprópria a tentativa do STJ em encontrar parâmetro para sua não fixação. Nesse caminhar, dentre todas as considerações, vemos abalo nas estruturas do Estado frente à concretização dos direitos do consumidor.

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